Peixes

dezembro 5, 2007
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Desligou o monitor irritado. Desafio mais besta. Havia jogado alguns palavrões no google e de link em link, numa busca desesperada por algo que lhe dissesse algo. Caiu na Cópula do Bandeira. Leu, não achou muita graça mas ficou impressionado com a experiência do velho. Só quem já botou a ponta da língua ali sabe do gosto. Foi atraído então, na lista ao lado pelo nome: Belmonte.
Lembrou de Canudos, lembrou de Canes, não da França, mas das praias de Canavieiras. O que mais lhe irritava na Internet eram garotos e garotas exibidos. E esta ainda colocava aquela boca obscena na tela, aqueles olhos verdes de cobra transformados em olhos vermelhos pelo flash. Olhos de Lilith.
Preferia comprar garotas. Quatro peixes, quatro notas de 100 eram suficientes.
Acendeu um baseado, foi ao banheiro e o jato amarelado e com um forte cheiro descia espalhado como um chuveirinho. Lembrou da necessidade de uma visita ao urologista, ele que já beirava os sessenta. Ligou para a ex-mulher, na Califórnia.  
– Hello?
– Yes, I’d like to speak to Nina, please…
Decorou aquela frase, dita de chofre para não esticar a conversa com o marido americano, ter que falar um inglês sofrível e se sentir menor ainda.
 _ Oi papai sou eu, o João Paulo. Não reconheceu a voz do filho, que até outro dia era uma criança batizada com o nome de dois dos ídolos de Liverpool. Agora falava hello…
_ A mãe está aqui na minha frente e disse que liga depois.
Era sempre assim, ela o evitava, ele insistia em ligar.
Estava fodido e esta garota, a boca, ainda o desafiava a ser feliz. Se ela aceitasse quatro notas de cem, nem que fosse para conversar sobre Augusto dos Anjos, sobre a ingratidão. 
Lembrou então de uma notícia recente sobre a diversão dos milionários russos. Viver um dia de pobre. Resolveu experimentar.
Atirou a bituca do baseado em direção à Baía de Todos os Santos (ainda mantinha o vício de pobre)  e desceu os 15 andares que o separava do Campo Grande. Atravessou a praça e resolveu ir a pé até o shopping Piedade. Há anos não tomava aquela direção. No máximo até a ladeira ao lado da Concha para pegar as avenidas de vale. Não agüentou o calor e o tranco da caminhada e entrou numa loja de roupa popular na Avenida Sete. Comprou uma camiseta vagabunda e uma bermuda colorida. Colocou a bermuda cinza e a camisa pólo comprada na Palermo Viejo, na última viagem a Buenos Aires, e seguiu em busca de uma sandália para substituir a sua de clássica de couro. Encontrou uma papete e completou o figurino. Foi até à Piedade e “esqueceu” a sacola perto de uns mendigos fedorentos que brigavam por um prato de caruru de véspera deixado por algum devoto de Santa Bárbara.
Seguiu para a Carlos Gomes. Sentou num bar decadente próximo a duas adolescentes, atraído pelas coxas de uma delas que sobrava em um short jeans e pela fenda generosa entre os peitos da outra. Ficou tão perto que ouviu a conversa sobre uma viagem próxima para a Itália. Faziam planos.  
Esqueceu que estava travestido, que estava no seu dia de pobre, virou-se e sentou na mesa com as duas, sem pedir nem licença.
_ Sai fora, tio. 
Resolveu sair mesmo, estava desarmado, mas antes cantra-atacou. Retirou duas notas de cem da carteira (a tática das notas de cem era infalível), colocou em cima da mesa sob a garrafa e arrematou: Quero uma das duas amanhã aqui, nesta mesma hora. Dou mais dois peixes.
O porteiro quase não segurou o sorriso mas deu um sério boa tarde doutor. Só não conteve o tom, quase interrogativo.  
Subiu furioso. Abriu o armário do banheiro e puxou o espelho. Pegou a gilete  e passou a golpear a pedra branca retirada de um saquinho plástico. Com movimentos firmes deu os últimos golpes e arrematou com capricho dois filetes brancos traçados com precisão sobre o espelho. Sorveu um em cada narina e seguiu para sala. Com a língua já dormente ligou novamente o monitor, clicou no w do Word e sentenciou:
Felicidade é uma puta a quatrocentos reais!
Seguiu para o quarto e se encolheu num canto, num choro convulsivo. Passou o resto da tarde e da noite olhando fotos, relendo  cartas. Gostava especialmente das da década de sessenta, ele ainda estudante pobre da Cidade Baixa, que vinha de Ônibus de Pedra Furada para estudar direito no Vale do Canela com os bens nascidos filhos de juizes e desembargadores. Nina era uma delas, mas se picou atrás de um americano filho da puta.
Havia enriquecido por outros caminhos, a advocacia exigia pedigree. E não tinha o talento de um Raul Seixas, colega de sala.
Começou a ganhar dinheiro como pioneiro no ramo da terceirização. Ficou rico alugando gente. Gostava de alugar e comprar gente.
Dormiu até as duas da tarde e ao acordar lembrou da compra parcelada do dia anterior. Resolveu ir, mais pelas coxas.
Vestiu seu uniforme de rico, tirou o Peugeot conversível da garagem e num minuto estava estacionado frente ao bar. Lá estava ela, a mais nova, a das coxas, expostas novamente, desta vez por uma saia jeans curta. Óculos escuros, franja, camisa amarrada na cintura e sandália de gladiador. O sorriso com dois furinhos nas bochechas e apele morena lembravam uma antiga secretária. Não precisou falar nada. Abriu a porta do carro e um segundo depois descobriu que por baixo da pequena saia havia apenas pentelhos bem aparados. Cheirou a mão, lembrou do doce do poeta e acelerou satisfeito. E feliz.

Próximos capítulos:
2 –  Ex-mulher
3 –  Filho
4 –  Mendigo
5 –  Uma moça
6 –  Outra moça
7 –  O Porteiro
8 –  O que se seguiu, narrado pela moça…
9  – O que se seguiu, narrado pelo moço…